Jogos no Feminino

História de VillaRamadas > Jogos no Feminino
09-11-2014
Rui Pelejão - Notícias Magazine

JÁ NÃO É UMA QUESTÃO DE GÉNERO: HÁ CADA VEZ MAIS MULHERES, DE TODAS AS IDADES, ATRAÍDAS PELOS JOGOS ELETRÓNICOS

O comando é delas.

Os jogos eletrónicos já não são coisa de adolescentes e de homens adultos. Graças ao mobile gamming, o número de mulheres que joga está a crescer e há uma revolução em curso que promete estilhaçar os estereótipos de uma poderosa indústria, com a mesma facilidade com que se rebentam bolas às cores no Bubble Witch Saga. A poucos dias do início, em Lisboa, de uma conferência internacional sobre jogos eletrónicos, falámos com mulheres e especialistas sobre este fenómeno cada vez mais natural.

Os bailes de carnaval e de verão do Casino das Caldas da Rainha eram o epicentro da vida social da cidade nas décadas de 50 e 60 do século passado. A estância termal já tinha perdido muito da sua importância, mas o casino mantinha o glamour e a exuberância do tempo em que a aristocracia e a alta burguesia iam a banhos às Caldas. Mas não era só por causa dos bailes
que Ana Paula Carvalho, Anabela Afonso e Fernanda Branco frequentavam o casino.

«Era também por causa do jogo», explica Ana Paula. «Naquele tempo, havia nas Caldas umas velhotas muito finas e compostas, refugiadas da Segunda Guerra Mundial, que jogavam à séria», diz Anabela Afonso. «Nós éramos miúdas e começámos também a jogar. Era jogo e bailes, praia pouco. Fui eleita Miss Praia num daqueles verões sem nunca ter posto os pés na praia. Passávamos os dia a jogar canasta, king ou bom dia senhorita.»

O prazer do jogo, especialmente da canasta, acompanhou-as pela vida fora. Até entrarem na era do jogo digital. «Tudo começou com a canasta no Yahoo», diz Fernanda Branco. «Cada vez tínhamos mais dificuldade em reunir pessoas para uma mesa e o jogo online acabou por substituir as mesas que ainda vamos fazendo, mas cada vez mais esporadicamente.»

Rapidamente o leque de jogos eletrónicos se foi abrindo, mas foi com o Facebook e com o fenómeno do Farmville que as três amigas, entre os 57 e os 63 anos, encontraram uma dinâmica comum. Susana Gambino acabou por juntar-se-lhes e aderir à febre das quintas virtuais. Rapidamente a vida agrícola tomou conta das conversas. «Às vezes, se estávamos com alguém
que não jogava, parecíamos de outro planeta, a falar das vaquinhas, das cenouras e dos aviões que precisávamos para as nossas quintas.» Ana Rolim, que confessa nunca ter tido grande apetência pelo jogo, acabou por aderir à movida na era do Bubble Witch Saga, que é agora o jogo que as une, «porque já não suportava ficar de fora das conversas!».

As latifundiárias virtuais das Caldas da Rainha chegaram a ter várias explorações agrícolas ao mesmo tempo, «o que dava um trabalho danado, para ordenhar as vaquinhas, apanhar as colheitas e manter tudo a funcionar», recorda Ana Paula Carvalho. «Por vezes pedíamos umas às outras para tratar das nossas quintas quando íamos de férias, dávamos a password do Facebook e tudo», acrescenta Susana Gambino.

O jogo eletrónico ocupa uma pequena, mas importante, parte do quotidiano destas mulheres. Telefonam umas às outras para pedir dicas e chegam a ter uma rotina diária. «Agora jogamos ao Bubble Witch», diz Susana Gambino. «Depois de arrumar a cozinha ou à noite distraio-me e divirto-me a estar ali uma ou duas horas concentrada naquilo.» Os maridos não parecem importar-se muito com o tempo que elas passam em frente aos tablets ou aos monitores – o consumo de jogos eletrónicos alargou-se nos últimos anos para outras plataformas, além do tradicional PC. Mas não jogam. «Eles são uns infoexcluídos», diz Ana Paula Carvalho entre gargalhadas. «O meu de vez em quando começa com a conversa “Lá estás tu com o jogo das bolinhas”, mas não me chateia muito com isso.» «Eu jogo muito no tablet, enquanto o meu marido está a ler, a ouvir música ou a ver filmes», acrescenta Susana Gambino.

O CONSUMO DE JOGOS ELETRÓNICOS disparou na última década, tornando-se um dos maiores fenómenos de consumo e de entretenimento, definindo novas formas de sociabilidade e convívio. Tradicionalmente o jogo é associado aos homens. Quantas vezes já vimos grupos de mulheres a jogar dominó ou sueca nos bancos de jardim ou nas mesas dos cafés? As mulheres preferem ser mais discretas nas rotinas de jogo e há um certo estigma associado ao jogo eletrónico, ou se quisermos, um certo «sentimento de culpa» por queimar pestanas e horas nos jogos do Facebook – que muita gente joga, apesar de não o admitir. Candy Crush Saga é jogado todos os dias por 93 milhões de utilizadores, tendo-se tornado um sucesso maior do que o fenómeno Angry Birds (o jogo com pássaros catapultados que deverão derrubar obstáculos, lançado pela empresa finlandesa Rovio Entertainment em 2009) nas diversas plataformas: Facebook, Android e iOS.

Se há coisa que a disseminação da tecnologia permitiu, foi implodir com alguns estereótipos – nomeadamente aquele que associa o jogador de videojogos a adolescentes. O mobile gaming (jogo eletrónico em plataformas como os tablets ou smartphones) democratizou e facilitou o acesso aos jogos e fez crescer o universo de mulheres a jogar no mundo inteiro, o que tem um impacto determinante numa indústria que, em muitos aspetos, superou a cinematográfica, gerando lucros anuais de quarenta mil milhões de euros.

Um estudo recente da Entertainement Software Association colocou as mulheres adultas no topo da «cadeia alimentar» dos consumidores de jogos nos EUA. As mulheres representam 36 por cento do universo de gammers, seguidas pelos homens adultos com 35 por cento de share e dos tais adolescentes que se julgava serem os «reis do gaming», com apenas 17 por cento.

Outro dado interessante do estudo é que o segmento demográfico que mais cresceu no consumo de jogos eletrónicos foi o das mulheres com mais de 50 anos (mais 32 por cento entre 2012 e 2013). Parece que as amigas das Caldas da Rainha tipificam, à sua escala, uma tendência global.

Mas as mulheres não se entretêm apenas a decorar a casa no The Sims, a trocar doces no Candy Crush e a rebentar balões no Bobbles. Muitas estão também prontas para a guerra e para dar uma sova nos rapazes nos chamados hardcore games, em que tradicionalmente aindústria mais investe em desenvolvimento e marketing.

«Há uma ideia incorreta e não demonstrável que, nos jogos eletrónicos, as mulheres só querem fazer compras, vestir as bonecas, tagarelar ou jogar bonitinho», diz Elisabeth Hayes, investigadora da Universidade de Wisconsin e autora de um estudo intitulado Mulheres, videojogos e aprendizagem: Para lá dos estereótipos. «Algumas até podem gostar da representação dessas atividades, mas elas também se divertem a abater monstros, guiar carros desportivos, salvar o mundo, construir impérios, recolher uma data de ouro e a vencerem o jogo, mesmo que ele seja violento.»

O mundo dos jogos eletrónicos já não é o «Clube do Bolinha», onde menina não entra. As Luluzinhas vão a jogo e armadas até aos dentes ou com as chuteiras calçadas.

ASSISTIR A UM JOGO DO REAL MADRID ao vivo para tentar melhorar as competências técnicas e táticas no simulador de futebol FIFA não é para qualquer um. Mas foi isso mesmo que fez Isabel Pires. «Jogo sempre com o Real Madrid e depois de tanto treino já sou muito difícil de bater no FIFA. Cheguei a ir ver um jogo ao vivo para perceber melhor a tática e ver se o meu 4x3x3 estava bem montado», conta, orgulhosa, esta farmacêutica de 34 anos que não esconde a feroz competitividade. «Comecei com 13 anos a gastar moedas numa espécie de slot machine num café na Encarnação [Lisboa]. Ia lá com o meu namorado. Estava tão viciada naquilo, que, depois de ele me levar a casa, eu saltava pela janela e voltava ao café para tentar a minha sorte. Tanto tentei que descobri a manha do jogo e comecei a ganhar muito dinheiro. Um dia saíram-me dez contos e foi nesse dia que o Senhor Custódio foi dizer à minha avó que eu andava a jogar nas máquinas a dinheiro.»

A propensão para o jogo é aliás um padrão comum a muitas Lady Gammers. Há quase sempre um contexto e um historial que percorre os últimos trinta anos de evolução do jogo eletrónico, desde os tempos do Pacman, dos salões de jogos de Arcade e flippers, das tardes passadas a jogar Chuckie Egg no ZX Spectrum, as noites em branco com o Sim City ou o Civilization, evoluindo dos Game Boys às consolas da Nintendo, com o histórico Super Mario Bros a marcar uma geração, antes da era das disquetes e CD no PC ou dos RPG (Role Playing Game) e multiplayer online.

Ana Pacheco passou por todas essas etapas desde a infância, em Portalegre. «Sempre adorei jogos eletrónicos. Quando a minha mãe nos comprou a primeira consola Atari, os meus colegas da escola organizavam excursões lá a casa para irem jogar», diz a arquiteta paisagista e ilustradora de 32 anos. «Depois passei por todas as etapas tecnológicas do jogo eletrónico até hoje. Sou uma gammer há quase trinta anos e continuo a jogar regularmente. Agora prefiro descobrir jogos de estúdios independentes com narrativas mais elaboradas, aventuras gráficas e Role Playing Games. Os jogos ajudam-me na minha cultura visual e gráfica, importante para o meu trabalho como ilustradora.»

Rita Espanha, socióloga e investigadora do ISCTE, admite que apesar de não haver dados muito atualizados sobre o tipo de jogos que as mulheres preferem, «é possível afirmar que essa diferenciação também terá tendência para o esbatimento, sendo que muito provavelmente continuará a existir uma preferência marcada pelo género em alguns casos concretos (desporto e ação mais para rapazes, jogos de construção e de simulação mais para raparigas)... mas claramente com tendência para se esbater. As novas gerações não são tão sensíveis ao complexo do “menina não entra”».

Débora Amorim, por exemplo, está imersa há cerca de um ano e meio num tipo de jogo tradicionalmente «para rapazes». É um MOBA (Multiplayer Online Battle Arena), chama-se League of Legends e reúne, em equipas de cinco jogadores online, avatares que vão combater num mundo imaginário: «É um jogo que requer estratégia e destreza. Cada jogo pode durar de meia hora a uma hora e meia. Normalmente faço um à tarde e outro à noite», explica a jovem de 20 anos que trabalha numa fábrica de confeções. «Durante o jogo estamos em comunicação com os outros jogadores, por Skype ou em streaming. Alguns deles estão do outro lado do mundo. O que gosto neste jogo é o desafio de ir melhorando o meu nível. Também é giro encontrar pessoas com gostos comuns e até fazer amizades. Nunca me senti descriminada por ser mulher.»

MARTA DINIS VIVE COM MARCELO CARVALHO. Ao contrário do que se passa com alguns maridos das senhoras do grupo das Caldas da Rainha, Marcelo e Marta partilham a paixão dos videojogos. Como este Injustice, que jogam agora. Catwoman, elegantemente vestida no seu fato de cabedal felino, desfere uma violenta chicotada em Batman, que retribui sem cavalheirismo, projetando um carro em chamas contra a sua adversária. Yoshi, um dos gatos lá de casa, batizado em homenagem ao dragão de Super Mario, passeia indolente pela sala, amuado com a batalha que tem lugar no grande ecrã e que exige toda a atenção dos donos.

Marta não evita soltar um queixume quando Catwoman é vítima de mais um ato de violência doméstica de Batman. «Ui, isso doeu!» A jogadora assume as dores da heroína que controla no jogo, um dos muitos que este casal de namorados tem na sua estante, além de objetos de coleção que denunciam uma paixão antiga, como o primeiro Spectrum.

Na história do casal (ela tem 34, ele 35), os jogos eletrónicos ocupam um lugar curioso. «Conhecemo-nos online e a primeira vez que fui a casa dos pais do Marcelo estivemos os dois a jogar Mortal Kombat. Quando começámos a viver juntos, os jogos eletrónicos continuaram a ocupar uma parte importante do nosso tempo livre. Agora jogamos coisas diferentes, porque eu tenho mau perder, mas cada um respeita o tempo e o espaço de jogo do outro», explica a adepta de Lara Croft e do jogo Tomb Raider, um dos raros onde o herói é uma personagem feminina.

«Houve uma altura em que jogámos muito ao Guitar Hero e a jogos de combate, agora cada qual faz os seus jogos», acrescenta Marcelo. «Em conjunto temos os puzzles físicos – outra das nossas paixões. Gerimos bem o tempo de gaming. Eu por exemplo trabalho em casa o dia todo, sou analista informático, e tenho bem delimitado o tempo que uso a jogar alguns dos meus jogos preferidos, de exploração e mapas, como o Uncharted ou o Grand Theft Auto V que levam muitas horas para completar.» No seu tempo livre, Marcelo desenvolve também alguns jogos para Android.

Partilhar o prazer e o divertimento que os jogos eletrónicos podem oferecer é um fator de equilíbrio importante numa relação onde há pelo menos um gammer. O ideal é haver dois, como no caso de Marta e Marcelo, ou de Isabel Pires e o seu ex-marido. «Jogávamos os dois horas a fio, especialmente jogos de futebol e de corridas de automóveis. Havia uma grande cumplicidade nisso. Ele chamava-me a Rainha das Ovais, as pistas circulares no Grande Turismo e eu geria-lhe a carreira no jogo, comprando peças para o carro, pneus, amortecedores e isso tudo. Era mesmo uma grande camaradagem que acabou quando nos separamos. Ele ficou com a PlayStation e passei só a jogar quando vou a casa dos meus pais.»

Quando a relação com o gaming é desproporcionada pode gerar conflitos conjugais, como confessa com humor a arquiteta Ana Pacheco: «Nunca mais volto a ter um namorado que não jogue. Tive um que me estava sempre a snobar por eu estar a jogar. Dizia--me que isso era coisa de miúdos e que devia era ler livros e ir a exposições, enquanto ele estava na esplanada a ler jornais desportivos e eu só queria terminar mais um nível do The Legend of Zelda.»

NOS EUA, AS MULHERES REPRESENTAM 36 POR CENTO DO UNIVERSO DE GAMMERS, SEGUIDAS PELOS HOMENS ADULTOS COM 35 POR CENTO DE SHARE E DOS ADOLESCENTES, QUE SE JULGAVA SEREM OS «REIS DO GAMING», COM APENAS 17 POR CENTO.

Na popular webserie americana House of Cards, a maquiavélica personagem do político Frank Underwood, desempenhada pelo ator Kevin Spacey, termina muitos dos seus dias de intriga a jogar PlayStation para relaxar. Mais do que um genial golpe de product placement da Sony, este gesto quotidiano é comum a milhões de pessoas pelo mundo. Os videojogos oferecem não só momentos de escape e descompressão como melhoram competências e estimulam a atividade cerebral, desde que jogados com moderação. Há uma intensa atividade científica que estuda a influência dos jogos no comportamento e no seu potencial de fitness para o cérebro. Longe vão os tempos em que eram apontados como indutores de violência, especialmente entre os jovens mais vulneráveis.

Para a infância, os jogos eletrónicos são cada vez mais encarados como ferramentas de aprendizagem que permitem, entre outras coisas, o desenvolvimento de apetência pelas ciências de computação, uma das vocações mais procuradas no mercado de trabalho do século XXI.

«O JOGO ELETRÓNICO E ONLINE é uma parte importante da ocupação do tempo de entretenimento», diz a socióloga Rita Espanha. «Isto acaba por influenciar o tipo de sociabilidade e também o tipo de aprendizagens. Mas não temos de ser conservadores nessas matérias. É verdade que é tempo que, eventualmente, deixa de ser dedicado a outras atividades, tradicionalmente mais reconhecidas, mas, na sociedade atual, o tipo de sociabilidades que se constroem a partir dos interesses partilhados são tão ou mais importantes do que as de conveniência – como frequentar a mesma escola ou viver no mesmo bairro.»

Os jogos eletrónicos começam também a ter utilização terapêutica, especialmente na terceira idade. NeuroRacer, por exemplo, é um jogo americano que está a ser desenvolvido em cooperação com neurologistas e psiquiatras e que estimula a destreza, a perceção espacial e a capacidade de memorização de pessoas entre os 70 e os 85 anos.

Mas também há aspetos menos positivos, como as acusações de sexismo e misoginia desta indústria. Um estudo da Universidade do Wisconsin corrobora uma destas teses, a de que os jogos representam as mulheres como estereótipos – ou donzela em apuros ou objeto sexual. De acordo com a investigação, 85 por cento das personagens jogáveis são do género masculino. Mesmo no jogo Harry Potter foi preciso haver uma onda de indignação dos fãs para a personagem de Hermione passar a ser «jogável». A indústria dos jogos está consciente deste problema, e provavelmente nos próximos anos vamos assistir ao aparecimento de mais heroínas como Lara Croft, até porque as mulheres representam já metade do mercado consumidor.

Sandra Páscoa, diretora de comunicação da Play-Station, admite que, apesar de a maior parte dos clientes da marca líder das vendas de consolas em Portugal serem homens, há cada vez mais mulheres a jogar hardcore games. «Vemos isso nos torneios e campeonatos que promovemos, onde aparecem cada vez mais raparigas. Depois há outro tipo de jogos que acabam por conquistar mais mulheres, como o Singstar, que é claramente um jogo social capaz de mobilizar pessoas de todas as idades e géneros. As aventuras gráficas e os jogos de estilo cinematográfico são também um bom exemplo de produtos que estão a captar cada vez mais o interesse do público feminino.»

«DEPOIS DE ARRUMAR A COZINHA OU À NOITE, DISTRAIO-ME E DIVIRTO-ME ALI UMA OU DUAS HORAS CONCENTRADA A JOGAR BUBBLE WATCH.»

Utilizamos cookies para garantir que o nosso site funcione da maneira mais tranquila possível e para analisar o tráfego da web. Se você continuar a usar o site, concorda com nossa Política de Cookies.
OK