Um chuto na dependência

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18-10-2002
Ana Pinto e Patrícia Dias, Jornal Mundo Português

RECUPERARA VONTADE DE VIVER EM VILLA RAMADAS

Maria tem 36 anos e é alcoólica. António tem 37 e é toxicodependente. Os nomes não são reais, mas a dependência é uma verdade com a qual convivem já há décadas. Depois de muitos anos a sofrer, e a fazer sofrer, Maria e António chegaram a Villa Ramadas, um centro de tratamento para pessoas com problemas de drogas e álcool. Sabem que não podem apagar o passado, mas estão a aprender a viver com ele ... E a ter esperanças no futuro.

Maria e António fazem parte das estatísticas que colocam Portugal no topo da tabela dos países da União Europeia (UE) com maior número de toxicodependentes (ver pag. 4). São entre 60 a 80 mil os portugueses que, por razões de diversa ordem, caíram neste lado obscuro da vida. O sofrimento e o desespero levam alguns a dizer "basta" e a procurar ajuda, a única ajuda possível nestes casos: o tratamento de desintoxicação numa clínica especializada. "Eu acredito que as pessoas só têm a capacidade para mudar quando sofrem e quando estão suficientemente desesperadas", afirmou a O Emigrante/Mundo Português, José Eduardo Ramadas, director geral e terapêutico de Villa Ramadas. Até porque, salienta, quando entram nas modernas instalações daquilo que já foi uma quinta de turismo rural, as pessoas "estão saturadas, cansadas, já sofreram «ressacaram», já tiveram que se humilhar por um pacote, que suplicar, têm um sofrimento tão grande que é doloroso ver nos olhos".

Natural de Leiria, depois de uma vasta experiência adquirida em Inglaterra, José Eduardo concretizou o sonho de criar em Portugal um projecto na área da recuperação de dependências químicas e comportamentais. Surgiu assim em Alcobaça, Villa Ramadas, único centro de tratamento em Portugal totalmente privado, oficialmente inaugurado a 14 de Setembro último, mas que já está em funcionamento desde o início do ano. Villa Ramadas utiliza o Modelo Minnesota, na versão de abstinência total, em conjunto com elementos das correntes Psico-Dinâmica, Humanística, Cognitiva-Comportamental e Gestalt. Com capacidade para 25 pessoas, o centro acolhe actualmente sete pacientes a cumprir o programa terapêutico "standard", que dura de 12 a 16 semanas. O centro oferece também outras duas vertentes do programa, o "recaída", com duração de dez a 12 semanas, e o "renovação", que dura quatro semanas. "A nossa terapia é a da fala, é a abstinência total de todo o tipo de medicação. Acreditamos que a pessoa só pode estar preenchida na sua totalidade se o seu lado interior estiver em harmonia com o lado intelectual. Ajudamos as pessoas a descobrir as qualidades que têm para se ajudar a elas própria.

É essa a definição de aconselhamento. O nosso trabalho é ajudar uma pessoa que está num estado vulnerável, para que se descubra a si própria, as suas qualidades.

Devolver a auto-estima

A doença da adição, comummente conhecida pelo termo dependência foi reconhecida há 22 anos pela Organização Mundial da Saúde. "Um doente adicto não gosta de si, não tem auto-estima nem amor-próprio, acha-se um ser muito inferior e muito pequenino. É nesse estado que chegam a Villa Ramadas os futuros pacientes. Foi nesse estado que se encontravam os actuais sete moradores do centro, quando chegaram a Villa Ramadas para uma entrevista de diagnóstico, É este primeiro contacto com o terapeuta que vai revelar se o toxicodependente ou o alcoólatra quer realmente, e de livre vontade, ser ajudado. Até porque, sublinha José Eduardo, o centro "não é nenhuma prisão, só se pode ajudar alguém quando ele está na disposição de ser ajudado". Uma disposição que geralmente dura horas ou minutos, e que se materializa "quando a mãe ou o pai liga, desesperado, a dizer que o filho quer ir para tratamento", revela o director. Os terapeutas entram então em acção para que em menos de 24 horas consigam levar o paciente para o centro, até porque, se não o fizerem e ''se lhe aparecer uma "fezada» ou mais cem euros ele cem euros ele vai usá-los e acabou, é capaz de andar mais seis meses ou um ano", até voltar ao minuto essencial em que pede ajuda, sublinha José Eduardo.

Depois de admitido, o paciente passa por um processo de desintoxicação que é feito numa clínica na Marinha Grande com a qual Villa Ramadas tem um protocolo. Passada essa fase, a chamada "síndroma da abstinência, que se caracteriza por cinco ou seis dias de ressaca em que a pessoa ''tem dores nas costas, arrepios pingo no nariz, não consegue dormir à noite, não consegue comer" , o paciente entra então em Villa Ramadas, onde irá viver nos próximos três a quatro meses. Todos os dias, durante oito horas, as pessoas não podem pensar em drogas ou no álcool e a única forma de o conseguir é através da terapia e do trabalho, com actividades que lhes devolvem a auto-estima, o valor próprio e o sentimento de produtividade. São dois grupos de terapia por dia e três horas de terapia individual por semana, momentos em que falam sobre as suas emoções, sentimentos e comportamentos, utilizando várias abordagens.

"Psico-dinâmica é uma abordagem inicial, em que levamos o paciente ao passado, de forma a que ele se recorde da maneira como magoou a mãe ao pedir-lhe ou exigir-lhe 10 contos para mais um «pacote». Voltar ao passado fá-los ganhar consciência do sofrimento que causaram a eles e aos outros. A outra das partes, é lidar diariamente com os pensamentos e sentimentos, numa abordagem Humanística, em que o doente é o centro. Ele é que tem todas as qualidades para superar todos os problemas. Ensinamos as pessoas a estarem, a apreciarem e a viverem na totalidade o presente e ao segundo, porque, aí, conseguem vibrar, arrepiar-se, viver emoções fortes. Na Gestalt, usamos o princípio de que o todo é mais relevante do que a soma de cada uma das partes. A forma como a pessoa se apresenta num todo, é mais importante do que aquilo que diz. Esta abordagem é a atitude perante a vida e a mude é a parte principal. Pela abordagem Gestalt, reunimos todas as partes, de forma a que a pessoa, se está feliz, está feliz, se está chateada, está chateada, e tem o direito a sentir-se da forma como está. Na última fase, usamos a abordagem cognitivo-comportamental, de forma a definir objectivos para a vida. Se não os houver, um toxicómano não tem razão para sair da cama e ir trabalhar. Ajudamos os pacientes a definir objectivos a atingir a um mês, a três meses, num ano. Esses objectivos são, depois, reavaliados e vão sendo modificados de ano a ano, de forma a que haja sempre uma motivação. O único objectivo quando estão a usar drogas é arranjarem mais dinheiro, é enganar o pai e a mãe, mentirem, roubarem, fazerem o que tiverem que fazer para arranjarem mais 30 ou 40 euros para mandarem um «chuto» ou para beberem mais um copo.

Têm um pensamento obsessivo contínuo de mais, e mais, e mais. Nós temos que remover essa obsessão pelas drogas", define José Eduardo.

Jardim do passado

Tratamentos à parte, há uma série de actividade que ocupam a mente e o corpo. Duas sessões de aeróbica por semana, actividades de jardinagem, jogos de futebol, passeios uma vez por semana que os levam até à Batalha, à praia da Nazaré ou às grutas de Mira D'Aire, são momentos que proporcionam o sentimento de um dia-a-dia (quase) normal. Além disso, são ainda motivados a frequentarem as reuniões de Narcóticos Anónimos e de Alcoólicos Anónimos, realizadas geralmente à noite, fora do centro. As actividades são completadas com trabalhos de leitura - "lêem muitos livros positivos" – com trabalhos escritos e workshops, onde têm um tema e uma tarde para o debaterem em grupo.

"Acordo a pensar nos projectos que tenho lá fora"

MARIA, assim a vamos chamar, está em Villa Ramadas há dois meses e três semanas. O nome é fictício, mas a história é bem real e conta muitos anos de sofrimento. Durante seis anos escondeu dos pais a dependência, mas o problema tornou-se cada vez mais visível. Agora, em tratamento no centro de Villa Ramadas, Maria só pensa na recuperação e no regresso, curada, a casa e ao filho de dez anos.

A DEPENDÊNCIA

"Já tinha experimentado haxixe antes, mas consegui parar. Comecei a meter-me no álcool tinha 16 anos. A dependência talvez seja da mente, o corpo acaba por ser uma consequência. Já tinha tentado outros tratamentos em Coimbra, há cinco anos, mas não tem nada a ver com isto. Era à base de medicação e em menos tempo"

VIDA DE DEPENDENTE

"Nunca fui despedida por acaso. Mesmo só por acaso. Já não conseguia trabalhar sem álcool. Levava álcool para o trabalho e bebia às escondidas"

O ACTUAL TRATAMENTO

"Tomamos consciência do mal que estávamos a fazer a outros e a nós. Há um entusiasmo para a vida. Percebermos que estamos em recuperação é algo maravilhoso. De certa forma, essa consciência e a alegria que começamos a sentir e a viver, dão-nos uma preparação que pode ser fundamental para a nossa vida". "Sinto ultimamente que tenho uma ânsia enorme em começar a fazer coisas diferentes. Acordo a pensar nos projectos que tenho lá fora, recuperar tudo o que fiz de mal aos meus pais, ao meu marido, ao meu filho, de dizer quanto os amo. Os meus pais estão, pela primeira vez: com muita esperança"

AS DIFERENÇAS

"Já estive um fim-de-semana em casa. Senti alguma coisa diferente. Senti mais conforto e bem-estar de manhã. Não tive vontade de "uso” mas senti que talvez não estivesse preparada para ficar já em casa. Senti um bocado de medo"

O FUTURO

"Já tenho projectos com o meu filho: sair com ele, praticar desporto com ele. Estou casada há dez anos e nesse período não trabalhei ou trabalhei por pouco tempo. Agora, não quero viver à custa do meu marido. Gostaria de fazer algo na área da pintura".

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