Reviver e enterrar o passado em Villa Ramadas

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12-08-2011
Martine Rainho, Região de Leiria

Testemunhos Seis adictos em álcool, droga, co-dependência, auto-mutilação, depressão e anorexia contam como foram para ao centro internacional de tratamento, em Alcobaça, e como esperam recuperar a sua vida

Há um pedaço de jardim onde se enterra o passado em Villa Ramadas, O "cemitério" chama logo a atenção a quem passa o portão da unidade de internamento de Aliceira, no concelho de Alcobaça. Carregado de simbolismo, acumula cruzes, objectos insólitos e mensagens de esperança de quem sobreviveu a tentativas de destruição e a um longo percurso de auto-descoberta.

É ali que os pacientes, no dia em que deixam o centro de internamento, depositam páginas e páginas de confissões, desabafos, sentimentos reprimidos e sonhos frustrados, virando costas a uma vida de dependências, prontos para abraçar o futuro.
O caminho não é fácil. O programa de tratamento em Villa Ramadas tem uma duração média de seis a nove meses, cada um mais intenso que o outro.

Com apenas 18 anos, Ana (nome fictícia) encontrou em Alcobaça uma oportunidade para recuperar a vida que tem pela frente. E que quase perdeu à conta de automutilações e tentativas de suicídio.
"Comecei aos 13 anos, era muito nova". Sem o pai por perto e com uma mãe depressiva, Ana não gostava, desde muito cedo, de ser contrariada. "Quando acontecia, sentia-me mal e não gostava de me sentir assim". Preferia a dor física"Era mais forte mas era mais fácil de aguentar”, confessa, recordando a espiral de sofrimento em que resvalou a sua adolescência. Embora esbatidas. as cicatrizes nos antebraços indiciam momentos de desespero que a vida de estudante não aligeirou.

Ana foi vítima de bullying, abandonou a escola, regressou para uma turma com alunos mais novos, não se sentia bem e os cortes sucediam-se. Acabou por ir parar à psiquiatria de um hospital do Porto. Mais uma vez, entre tantas outras. "Encheram-me de medicamentos mas não resultou. Só pensava em maneiras de me suicidar", Até que chegou o dia em que disse "basta". Estava em casa com a mãe, com ideias suicidas e pediu ajuda para ser internada. Terá sido então que uma reportagem sobre Susana, jovem anoréctica, lhe salvou a vida. A família decidiu internar Ana em Villa Ramadas, onde entrou na semana seguinte. Já lá vão quatro meses.

"Foi muito difícil no início. Já tive vontade de me ir embora, principalmente quando fui pela primeira vez a casa". Podia tê-lo feito, O portão está sempre aberto em Villa Ramadas. Houve já quem saísse sem avisar para regressar pouco depois. Ao decidir ficar, Ana optou contudo pela vida. "Só ganhei coisas desde que cheguei: tenho uma relação excelente com o meu pai; não tomo nenhuma medicação; a dor física não existe”. Por vezes, imagina-se a “aproveitar a vida lá fora e voltar daqui a uns anos”. Mas, “depois penso que poderia estar a fazer asneira e já não estar cá”.

Foi tomando consciência dos danos todos que causou à família e a si". "Já chorei muito aqui mas isto está a tornar-me uma pessoa mais forte". Quanto às ideias de auto- mutilação e suicídio, Ana admite que "nunca vão deixar de existir". "É um padrão nosso, mas vou aprendendo a lidar com as situações e a pedir ajuda", afirma, ela que já traça um futuro risonho, onde cabem, em primeiro lugar, a felicidade, mas também um curso de contabilidade e outro de música.

"Sentia que estava a morrer"

Tão frágil quanto a voz que tenta projectar, Susana, de 30 anos, já recuperou algum peso em Aliceira. Tinha 29 quilos quando chegou, há cerca de cinco meses.

Vítima de abuso sexual em criança, recalcou o sofrimento. O clique aconteceu na adolescência, quando, aos 14 anos, encontrou na preocupação com a imagem, despertada entre amigas, um argumento para desistir de viver e deixar de comer. Aos 16, a anorexia era evidente, passou a ser medicada para a depressão. Foi internada várias vezes, recuperava fisicamente, mas “o que sentia, o que vivia, não mudava absolutamente nada”. Susana sabia que tinha perdido algo e nada a preenchia. Isolava-se
e fugia de quem procurava ajudá-la. Já adulta, foi para o Fundão estudar contabilidade, num ambiente onde se sentia realizada. Chegou aos 55 quilos, mas foi sol de pouca dura. Quando regressou à terra natal, uma oportunidade de trabalho não correu de feição e acabou por reavivar o passado. Susana voltou a emagrecer. "Sentia que estava a morrer, mas não sabia o que havia de fazer". Em Janeiro, uma reportagem sobre o centro abriu caminho para o seu internamento. Dois meses depois, era Susana quem partilhava o seu testemunho. Hoje vive um dia de cada vez, com o sonho de tirar um curso na área da terapia da fala, enfermagem ou socorrismo.

A disciplina reina em Villa Ramadas. Há regras e horários para cumprir. Há horas para trabalhar, socializar e descansar. A ideia é mesmo devolver aos pacientes equilíbrio e a saúde de que tanto precisam para regressarem à vida “cá fora”. O dia é dividido em três tempos, seis dias por semana. Oito horas são dedicadas ao trabalho e acompanhamento terapêutico, comparticipação em grupos de terapias e terapias individuais, realização de trabalhos escritos e leituras semanais. “Não é nenhum campo de férias, não é nenhum hotel de cinco estrelas. Há um trabalho muito intenso de introspecção, de libertação de traumas acumulados ao longo dos anos e de toneladas de culpa e vergonha”, frisa o director Eduardo da Silva. Oito horas são destinadas ao lazer, convívio e actividades diárias da casa, e as ultimas oito reservadas ao descanso. Há recolher obrigatório às 23j30 e o despertar é às 7h30 da manhã. Todos os dias, 24 sobre 24 horas, os pacientes são acompanhados pela equipa terapêutica. Após um a dois meses de tratamento, o paciente pode receber a visita da família. Mais tarde. É ele que vai a casa passar uns dias. Até posto à prova.

De adição em adição, do problema à auto-descoberta

"Mais do que ajudar pessoas que sofram de problemas diversos, ajudamos qualquer indivíduo que pretenda adquirir um auto-conhecimento mais profundo para poder lidar com problemas do passado, sejam adições ou não", explica Eduardo da Silva, director terapêutico do Centro Villa Ramadas.

A unidade voltou-se, há cerca de um ano, para a área do Desporto. "Estamos a acompanhar perto de 35 atletas para conseguirem atingir prestações mais interessantes. Quatro vão aos jogos olímpicos de Londres".
Alguns estão internados, enquanto outros são acompanhados em ambulatório.

Mas é na área das adições que Villa Ramadas conquistou, nos últimos dez anos, a sua reputação. "Somos especialistas em remover a obsessão que as pessoas têm por uma determinada substância". Como? Focando todo o programa de tratamento "na mudança de pensamento, trabalhando muito a parte das emoções e comportamental, a auto-estima e o amor próprio de modo a que a pessoa não tenha necessidade de usar drogas, beber álcool, vomitar ou cortar-se".

Eduardo da Silva vê aliás a adição como sintoma de problemas ou frustrações recalcadas. " Isto um trabalho muito exigente", acrescenta, explicando que as recaídas também são parte "do processo de aprendizagem" e revelam que "um determinado ponto fraco não foi fortalecido". Baseada no modelo Change & Grow de desenvolvimento pessoal e nos 12 passos dos Alcoólicos Anónimos, a abordagem terapêutica adoptada pelo centro Villa Ramadas distingue-se de todas as outras. Assume-se como pioneira a nível mundial pelo facto de usar o mesmo modelo em adictos em substâncias várias, viciados no jogo, sexo, internet ou compras, com depressão, transtornos obsessivo-compulsivos, bipolares, distúrbios alimentares, co-dependência ou que se auto-mutilam.

Villa Ramadas aposta ainda no aconselhamento e apoio à família, ainda antes do internamento do doente, durante o tratamento e no final, com vista à sua integração. As famílias sofrem, por vezes, mais do que os pacientes e precisam também de aprender a lidar com doenças que demoram a identificar e não controlam.

Drogas, álcool e obsessão
sem fronteiras


Marco tem apenas 20 anos mas já consumiu álcool e drogas, fugiu de casa, dormiu na rua, pediu esmola, foi viver para Paris, incendiou carros a troco de dinheiro e cocaína, roubou, enfrentou a morte por três vezes, foi detido outras tantas, foi condenado, tentou recuperar, recaiu e deu de caras com mais uma oportunidade.

É na unidade da Feteira, em Alcobaça, que Marco reaprende, desde Janeiro, a viver uma vida são. Foram os pais que o foram buscar a Paris, logo depois do Natal, na tentativa, mais uma, de o salvar. A confrontação acabou em agressões, chamou-se a policia e foi-lhe feito um ultimato: ou regressava com eles para ser tratado ou ia preso. Escolheu viver, mas não foi fácil virar costas a oito anos de dependência.

Marco começou a consumir álcool e drogas leves aos 12 anos. O primeiro contacto com a cocaína aconteceu aos 14, percorria o país de festa em festa, dando asas à “rebeldia”. Deixou o curso a meio, saiu de casa para viver com uma rapariga de 18 anos. Quando a relação terminou, ficou na rua. Ainda não tinha 16 anos andava a pedir esmola junto à Sé Velha de Coimbra e provou heroína. Tinha perdido 20 quilos e voltou para casa, para fugir aos 17, para Paris, onde se entregou ao álcool e às drogas.

Hoje, sabe que pode perder facilmente o controlo, mas que não está sozinho. Aprendeu a lidar com a dor, a frustração, as emoções e o seu carácter. Reconquistou a relação com a família e velhos amigos, e já traça planos para tirar a carta e um curso de cozinha/pastelaria.

Tão perigoso como uma droga

Também Diego, de 23 anos, começou a consumir muito cedo. O comportamento impulsivo e rebelde, a fuga às responsabilidades e a falta de auto-estima delinearam um trajecto de decadência. Aos 21 anos, o jovem madrileno, que alimentava relações disfuncionais, iniciou uma relação com uma prostituta. Em pouco tempo, a obsessão e o ciúme abriram portas a uma relação destrutiva, sobre a qual pairavam os consumos, as discussões e os maus-tratos.

Diego roubou dinheiro ao pai para fugir para Barcelona em nome de uma paixão disfarçada de amor. Acabou por gastar 30 mil euros em prostituição, drogas e na compra do carinho que tanto perseguia. “A minha droga era ela. Quem me visse poderia pensar que estava assim por causa da heroína”. Sozinho em Barcelona, quando toda a Espanha festejava a vitória no Mundial de Futebol, Diego pensou no suicídio. “Só queria morrer para me juntar a ela no futuro. Não tinha qualquer amor-próprio”. Em Villa Ramadas, aprendeu “a ser humilde e que estas coisas acontecem”.

Com um sorriso, Diego diz ter muitos projectos. Quer escrever um livro, tirar um curso de conselheiro para ajudar outros jovens e dedicar-se à música e ao cinema.

“Não sou diferente dos outros, sou uma pessoa normal que começou mal a vida”, diz Marco. “O que tenho de fazer é manter-me em recuperação. É um trabalho para a vida” sustenta Diego, em Villa Ramadas desde Novembro.

“Hoje, quero agradecer a alguém por ainda estar vivo, que mereço viver, que mereço ser livre, que mereço amor e dar amor. Rui, acorda para a vida. Permite-te ser feliz. Vive uma vida bela e não uma bela vida. Obrigado a todos. Bem hajam. +24”
Mensagem de Rui (nome fictício), 57 anos, alcoólico, na véspera de deixar o centro

"Encontrei o que mais procurava que era a mim. Hoje sou livre e feliz. Sou uma mulher linda"
Susana. 30 Anos, anoréctica, internada há cerca de cinco meses na unidade de Aliceira

"Nós, adictos, não queremos sentir as coisas, queremos refugiar-nos. Somos muito orgulhosos, raivosos, vemos tudo a preto e a vida cheia de injustiças e maldades e não conseguimos olhar as coisas pelo lado positivo"
Sofia (nome fictício), 35 anos, depressiva internada há pouco mais de um mês na unidade de Aliceira

"Embora os percursos e as manifestações do problema sejam diferentes [para cada paciente], a raiz é igual: é sempre emocional"
Isabe1 Pedro, psicóloga e membro da equipa terapêutica de Villa Ramadas há cerca de cinco anos

Aos 57 anos, Rui (nome fictício), profissional independente, acordou para a vida. Sábado passado, enterrou 45 anos de pensamentos, sentimentos e comportamentos destrutivos, a maioria associada ao consumo de álcool. Foram necessários oito meses para se recompor e encontrar motivos para viver. “A minha vida estava completamente desgovernada e o meu problema de adição estava num crescendo acelerado. Estava a caminhar para o abismo”, contou na véspera ao REGIÃO DE LEIRIA. Em Alcobaça, Rui reencontrou-se e descobriu a paz de espírito que tanto ansiava, após anos de luta e negação. “Foi muito longe de Portugal - numa ilha do Atlântico, a cinco mil quilómetros - que atirei a toalha ao chão”, sem saber se chegaria a Portugal. Não sabe explicar como, acordou no Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Pela primeira vez, deixou de lutar e pediu ajuda. Foi o que o salvou. Quando chegou a Villa Ramadas, Rui já se tinha livrado da dependência física – tinham passado cinco meses num outro centro de desintoxicação, mas teve enfrentar momentos difíceis em termos emocionais. “Obviamente que nós, aqui, estamos protegidos. O mundo lá fora é um mundo real, mas esse tratamento fez-me pensar melhor, sentir-me melhore vou tentar comportar-me melhor”.

Enquanto Rui se despedia, Sofia (nome fictício), de 35 anos, dava os primeiros passos para a vida que 20 anos de depressões arrasaram. As mãos trémulas desmentiam o distanciamento que a voz, algo mecânica, transmitia. Professora do 1º ciclo, Sofia só começou a ser medicada aos 25. Consultou vários psiquiatras e neurologistas, mas “cada vez que me sentia pior”. “Quando tinha recaídas, só me dava para ficar na cama”. Mal começava o ano lectivo, lá ficava de baixa.” A minha vida não fazia sentido, só me apetecia chorar, gritar e tinha ataques de euforia”. Sofia foi internada várias vezes em unidades psiquiátricas, mas a vertente psicológica sempre foi descurada. “Hoje, sinto-me mais optimisita, já saio da cama, dou-me com vários colegas e estou a acreditar mais nisto”.

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