Tenho que tentar remediar o que fiz mal

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18-10-2002
Jornal Mundo Português

O acompanhamento é total, não acaba com o fim do tratamento no centro. E porque, regressar à vida normal extra-muros é um processo difícil e demorado, os pacientes têm um apoio vitalício. São os chamados «after-care», grupos de terapia realizados aos sábados e obrigatórios nas primeiras quatro semanas após a saída. Mas as portas do centro mantêm-se abertas aos anteriores pacientes que podem participar nos grupo de «after-care» sempre que sentirem necessidade. A preocupação com um regresso à sociedade passa também pelo apoio na reinserção no mercado de trabalho, até porque não poderá haver recuperação total se a mente e o corpo não estiverem ocupados oito horas por dia 'com uma actividade. "No último mês do tratamento, usamos a abordagem cognitivo-comportamental, de definição de objectivos. Trabalhar faz parte dos objectivos das pessoas. Se andou dez anos a viver à custa do dinheiro do pai, da mãe, que roubava para comprar 20 ou 30 contos de droga por dia, não vai entrar em recuperação sem trabalhar. Nós motivamos e damos coragem porque, antes de saírem daqui, têm de ir a entrevistas de emprego. Saem daqui sempre a uma sexta~feira, às 14h30, e segunda-feira, às 9hOO, começam a trabalhar. Se não trabalharem não se tornam responsáveis",revela o director.

O acompanhamento aos pacientes indui sempre um contacto próximo com as famílias. E se os primeiros chegam a Villa Ramadas física e psicologicamente debilitados, os segundos às vezes sem se aperceberem, estão também muito doentes. Por esse motivo o centro organiza conferências de famílias, já que, segundo o terapauta Nuno Romano, a família precisa tanto de ser ajudada como o próprio doente. " O amor que têm pelo filho, filha, marido, seja quem for, leva-os a querer fazer tudo do bom e do melhor e acabam por não ajudar. Pensam que estão a ajudar, mas não estão", afirma Nuno Romano. "Nós damos sugestões do que achamos que é melhor para cada um dos pacientes e eles seguem ou não, à vida é deles, a decisão é sempre deles. O mesmo se passa com as famílias: nós podemos dar sugestões, podemos abrir portas e dizer que se calhar melhor será passar por determinada porta, mas se a pessoa vai passar ou não isso já não está na minha mão. Mas o nosso papel no fundo também não é esse, é mostrar no que nós acreditamos, como tem funcionado ao longo dos anos com milhares de pessoas. A porta está ali, é só passar', finaliza.

Conseguir passar pela porta e recomeçar é um objectivo sonhado e o culminar de quatro meses de trabalho em conjunto. Para pacientes, familiares e terapeutas, a saída do centro de tratamento é sempre um momento muito aguardado. Talvez por isso o acto da saída de Villa Ramadas é assinalada com uma cerimónia que simboliza culminar de todo o trabalho ali realizado. Num pequeno espaço da área verde, foi criado o Jardim do Passado, um "cemitério" onde os pacientes rasgam, queimam e enterram todos os trabalhos escritos que fizeram ao longo das 12 a 16 semanas que ali estiveram. Sabem que não podem riscar o passado, mas aprendem a viver com ele. E, como lembra Maria,"percebermos que estamos em recuperação é algo maravilhoso".

”Tenho que tentar remediar o que fiz mal”

ANTÓNIO, nome fictício, tem 37 anos e está em Villa Ramadas há cinco semanas. Casado, pai de duas filhas de 6 e 14 anos, procura agora o tratamento que lhe devolva a alegria de viver há muito perdida no mundo das drogas pesadas. Estando a sua mulher também a passar por um processo de cura, é o patrão de António que, curiosamente, está a pagar a recuperação a ambos. A visita da família e o regresso a casa são ansiosamente esperados.

A DEPENDÊNCIA

"Comecei aos 14 anos a fumar haxixe e durante 18 anos foi assim. Aos 31 anos comecei com drogas pesadas para ter energia para trabalhar nos moldes em plástico. É o princípio. Ganhávamos mais dinheiro no horário das seis da manhã à meia-noite e, quando o patrão pedia eu aceitava.

O dinheiro chegava. Comecei por consumir mensalmente, uma ou duas vezes. Como não dava ressaca pensei que ao fim-de-semana também não dava. Mas, a meio da semana, tinha o corpo é as pernas pesadas. Depois, era todas as semanas e, depois, todos os dias"

VIDA DE DEPENDENTE

"Nos primeiros anos, até me controlava a fumar duas ou três vezes por dia, mas comecei a descontrolar a minha vida. Tinha que arranjar dinheiro de qualquer maneira. Tinha que trabalhar porque tinha mulher e duas filhas, mas não trabalhava sem droga. Queremos sempre mais. Em Janeiro do ano passado, tinha muitas dívidas, fiz coisas que nunca pensei fazer. Em Dezembro do ano passado fui despedido, o que, em 18 anos, nunca me tinha acontecido.

Durante dois meses andei nos bairros de uso" Nessa altura, fiz uma desintoxicação. Trancaram-me em casa, sem chaves do carro, sem nada. Foi uma grande ajuda, momentânea, mas em que ganhei novamente confiança nas pessoas.

Em finais de Março, arranjei emprego, numa empresa que precisava de alguém no meu ramo. Foi o meu cunhado que me indicou Quando os quatro sócios da empresa a decidiram vender, um dos clientes comprou a fábrica e teve conhecimento do meu trabalho.

É ele que está a investir em mim e não é tão pouco quanto isso. É ele que está a pagar o meu tratamento e conheci-o há 15 dias. Digo que foi Deus que o pôs no meu caminho".

O ACTUAL TRATAMENTO

"Uma pessoa, quando chega aqui, diz sempre que não leva a lado nenhum. Eu vejo que abri a caixa de um puzzle e cada peça dá fundamento às coisas. Só tenho de continuar a procurar as peças para encaixar. Temos a doença para a toda a vida, mas temos que ter consciência que cabeça manda o corpo. Para mim o que mais ajuda, são as terapias em mini grupo e o apoio que staff nos dá: Mesmo que tenhamos um sentimento negativos eles sabem e fazem com que pensemos positivo".

O FUTURO

"Tenho que tentar remediar o que fiz mal. Ganhar confiança nas pessoas, endireitar a minha vida porque tenho duas filhas. Quero dar-lhes tudo o que merecem. O que damos não é o verdadeiro.

Sistemas de substituição não resultam

A nível mundial, as estatísticas revelam que, a cada 15 minutos que passam, morre uma pessoa com a doença da adição, "possivelmente ao volante, bêbada, possivelmente com uma corda ao pescoço, enforcada numa prisão da China porque não aguenta a pena, possivelmente com uma seringa no Casal Ventoso, possivelmente com um tiro na cabeça numa rusga na Curraleira. Acho que se deve dar uma oportunidade a essas pessoas". São palavras de José Eduardo, director geral e terapêutico do centro de recuperação Villa Ramadas.

A oportunidade que refere ser devida aos doentes da adição é um tratamento a nível psicológico, já que não concorda com dois dos programas de recuperação realizados em Portugal - a troca de seringas usadas e de droga por metadona nas farmácias, e a criação de salas de chuto, onde os toxicodependentes se podem injectar longe da vista da público. É uma forma de manter o vício", afirma o director do centro. "É uma política que gera dinheiro. A metadona paga-se. Um drogado que não se está a recuperar, está a empregar dez ou 15 pessoas à sua volta. Há outras pessoas que necessitam desse dinheiro".

Os sistemas de substituição apenas ajudam a manter "o problema controlado a nível de estatísticas", revela. "É tudo parte de uma política de Governo. Ao darem a metadona, ao substituírem uma droga, têm as pessoas catalogadas.

Não é uma solução, mas estão num cantinho, a tomar metadona todos os dias". A gravidade da situação está no facto desses doentes terem a possibilidade de se drogarem duas vezes. Como adictos que são, compram a sua droga habitual e aproveitam ainda a metadona fornecida nas farmácias. "É uma dose grátis, um bónus que eles recebem", explica José Eduardo. O director de Villa Ramadas é bem claro no seu método.

"Enquanto tiveram as portas abertas, não têm razão para mudar. Enquanto puderem ter uma dose gratuita, porque é que hão de parar? Acredito naquilo que vejo com os meus olhos e que resulta ao longo dos anos, que é uma abstinência total de todo o tipo de drogas”.

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